Fabricio Carpinejar: "Às cinco da manhã, Nico largou
ao chão sua gravata"
... Às
cinco da manhã
Fabrício Carpinejar
Às cinco da manhã, a morte
tem menos esperança, a fé tem menos altares, as velas se apagaram nas esquinas
de Porto Alegre. Às cinco da manhã, o Guaíba quebrou sua luz, o pão se partiu
sozinho, o açúcar perdeu seu brilho.Às cinco da manhã, as roletas do trem
pararam de pensar, os elevadores se sentiram velhos, as pombas fizeram greve
dos farelos.
Às cinco da manhã, o suor
veio antes do sol, as ladeiras se despedaçaram como vidraças, as sombras
correram para o Mercado Público.
Às cinco da manhã, o musgo se
divorciou da pedra, ex-fumantes voltaram ao vício, amantes fingiram derradeiras
promessas, não havia chave para abrir as janelas.
Às cinco da manhã, morreu
Nico Nicolaiewsky. Ai que terrível, serão cinco e meia da manhã nos relógios da
capital gaúcha durante o dia inteiro.
Nico colocou seu último
suspiro para sorrir. Pensou que fosse a mesma coisa. Sorrir, suspirar.
Acenou com os dentes, mordeu
a palha do vento, como a dizer que daria uma volta no invisível e já retomava o
ensaio com os violinos.
Às cinco da manhã, Nico
largou ao chão sua gravata, seu colete, seu par de sapatos de bico fino, seu
bigode da Sbórnia, suas canções desesperadas de amor. E as rosas brotaram de
sua pele branca e cansada.
Enrolem o Maestro Pletskaya
com as cortinas do Theatro São Pedro, coloquem algodão em seus ouvidos, ele é
todo feito de cristal: ele é todo cristalino.
Morreu Nico. Morreu o tango
de novo. Morreu a própria tragédia. Sua voz era de um lobo que já tinha sido
homem. Hoje só podemos cantar uivando.
Não terá caixão para
levá-lo. Não terá caixão para fechá-lo. Ele não é um morto, mas um piano
parado.
Confisquem a lua em
fevereiro, os corrimões das escadas, soltem os dragões e os cachorros de pedra
da Praça da Matriz.
Segurem minhas mãos para não
pegar o telefone. Segurem meus braços para não esmurrar a porta. Segurem minhas
pernas para não procurá-lo. Segurem
meus joelhos para não acordar o acordeon. Amarrem-me em qualquer lugar que não
fale português e desperte saudade.
Prendam-me na cama,
anestesiem meu sangue - estou tão acostumando a enxergá-lo vivo que fui junto.
Só deixem minha cabeça livre.
Para mexer a cabeça, para dançar Copérnico com os olhos e esperar que ele
volte.
Ele sempre volta.
(NICO NICOLAIEWSKY
- Porto Alegre, 9 de junho de 1957
—
Porto Alegre, 7 de fevereiro de 2014)
Nenhum comentário:
Postar um comentário